Outras Histórias
A história foi contada por Nilo, o neto. Não falou sobre a avó, mas sobre o avô, Rogério, que trabalhava como contador do seu bisavô. Falou das sete mulheres e dos dezessete filhos de Rogério, dois deles com Marília e cinco com Cida, irmã mais velha de Marília. Contou da beleza dos dezesseis anos de Cida, e de como Rogério se apaixonara por ela de forma intensa e insana: por Cida, Rogério acabaria por abandonar a primeira esposa, mãe dos primeiros três filhos. Nilo não falou das outras esposas e dos outros filhos, todos posteriores a Cida e Marília. Sobre isso, sabia pouco. Apenas alguns detalhes que Sandra, a última, contara a todos quando da morte de Rogério em um hospital qualquer, morte de causa desconhecida e ignorada.
Com Cida, Rogério viajou para o interior do estado de São Paulo e lá viveram por dois anos. Ao retornarem, convenceram o pai de Cida, àquele momento proprietário de postos de gasolina, a mudar com a família para o Rio de Janeiro. Ali, o bisavô comprou um hotel e acomodou toda a família. Não demorou muito para que Marília, a irmã mais nova de Cida, percebesse os olhares de Rogério, especialmente à noite, quando ele a espiava da porta do quarto. Ele tinha cinquenta e cinco anos e, Marília, dezesseis, quando se deitaram juntos na calada da noite quente de verão, as paredes do hotel transpirando calor e tédio. Rogério explicou que era como uma brincadeira, algo parecido com a que a menina fazia com as suas bonecas, e Marília não viu nisso nada de errado já que Cida também tinha dezesseis quando se tornara esposa de Rogério. Passaram a viver todos reunidos, o bisavô, as irmãs, Rogério e os sete filhos, primos e irmãos ao mesmo tempo. O silêncio garantia a convivência pacífica, e os moradores da casa nada comentavam, tampouco perguntavam ou manifestavam alguma surpresa. Nada disseram, nem mesmo quando Rogério fugiu, abandonando as duas irmãs e os filhos, deixando para trás os seus problemas com os agiotas de quem havia emprestado muito dinheiro. Falido, ao bisavô restara levar todos para Santana de Parnaíba, onde passou a trabalhar de caseiro.
No começo, não preocupara a ninguém a mania de Marília de jogar água e lavar móveis, piso e teto sempre que alguma outra mulher visitasse a casa, exceção feita às presenças da própria filha e, posteriormente, da neta. Talvez os filhos e sobrinhos nem se dessem conta da estranheza do fato, não fosse a dificuldade de encontrar alguma empregada doméstica que suportasse a mania de Marilia, e a proibição de encostar-se a qualquer lugar da sala ou da cozinha. Ao único médico em quem confiou, Marilia esclareceu que sentira aquele nojo depois da primeira noite com Rogério, o nojo de qualquer possível marca de sangue menstrual em qualquer possível lugar da casa. Não era nojo do sangue da virgindade perdida, já que não vira o sangue derramado, um filete líquido que escorrera e manchara quase nada o lençol branco com cheiro de lavanda: o que a angustiava, e desde aquela primeira noite, era o asco de alguma provável marca de sangue menstrual.
Demoraram muitos anos para que Marília, finalmente, sublimasse o asco e a necessidade urgente de limpar a casa. Hoje, aos 83 anos, ela vive tranquila e cercada dos netos. Segundo o que ela explicou para Nilo, não casou e não teve outro homem depois de Rogério: afinal, ele havia sido, e ainda era, o grande amor de sua vida. E se, de forma mágica, um dilúvio desabasse sobre ela, a água certamente refrescaria a alma, mas jamais aliviaria a dor da carne.
Nota: esta história me foi contada pelo neto de Marilia (nome fictício) em 2012. Impressionada, lembrei da V., amiga de colégio: aos dezesseis anos, em visita aos parentes na Iugoslávia, ela deixara a marca indelével da menstruação no veludo verde musgo do sofá de uma tia. Depois, pensei em mim mesma, sempre às voltas com um fluxo menstrual abundante, dolorido, e que ultrapassava os limites dos absorventes e das roupas. Lembrei de mim que, mesmo na menopausa, continuava a olhar o acento quando me levantava, constrangida se percebesse o vestígio de alguma umidade íntima. Escrevi sobre Marília de imediato, mostrei para o neto e guardei o texto para publicar em algum momento adequado. O neto, posteriormente, revelou que havia lido o texto para a avó. Ela não fizera nenhum comentário, apenas deixara escorrer uma lágrima dos olhos.
Ivy Judensnaider
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