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Foto do escritorHistórias que Contam

A Roda da Fortuna¹

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Quais as chances de alguém sobreviver a um tiro de uma arma encostada na sua testa? Poucas, suponho. Não fosse assim, os tiros nos ossos temporais não seriam os mais frequentes em casos de suicídio.

Uma pesquisa na web revela que a chance de alguém escapar de um tiro na testa com vida, e sem lesões posteriores, é menor do que 3%. Depende. Probabilidades são relativas. É um clichê, mas o fato é que tudo depende. 


Ele havia sido convidado para o lançamento de um livro em Jandira, um evento importante e, talvez, solene. Levava a máquina fotográfica profissional para tirar fotos. Combinara com Jonas de encontra-lo às margens do rodoanel para irem juntos, no mesmo carro. No caminho para o lugar combinado, viu dois meninos brincando com uma pipa. Estranhou. Os instintos o alertaram. Sentiu cheiro de perigo. A sensação aumentou quando percebeu que os garotos o seguiam depois de já ter passado por eles.


Foi tudo muito rápido. O carro do amigo já encostara e os meninos se aproximaram. Um deles encostou a arma na cabeça de Jonas. O outro pediu para que ele entregasse tudo, inclusive a máquina fotográfica. Ele hesitou. A máquina não, por favor. Preciso dela para trabalhar. Será que se tivesse ficado quieto nada teria acontecido? Já estava escrito o que aconteceria, independentemente de ele protestar ou não? O pedido irritou o assaltante, que não titubeou ao encostar a arma na testa do outro e atirar. 


Segundo as porcentagens e o que sabemos sobre chances de sobrevivência, ele morreria lá. Não foi o que aconteceu. Os rapazes pegaram celulares, carteiras e a máquina fotográfica e saíram correndo. Ele entrou no carro, ensanguentado. Jonas, desesperado, saiu pela estrada procurando um pronto socorro cuja localização os dois desconheciam. 


No caminho, ele foi se despedindo da vida. No pronto-socorro, os médicos chamaram uma UTI móvel que o levou para um hospital. A equipe, já avisada, estava a postos para recebe-lo. Na maca, a caminho da sala de exames, foi contando o número de luzes no teto. Parecia filme, mas era real. O tiro havia sido real, o sangue era real, a sensação de morte também. Ele sabia que podia estar morrendo. Não é possível que eu esteja morrendo. Como eu posso estar morrendo se ainda há tanto a fazer, tantos amores a viver, tantas provas para corrigir, tantas aulas para dar? 


Fez dois raios-X. Os médicos perguntaram se ele acreditava em Deus. Se não acreditava, era melhor começar a acreditar: a arma deveria estar velha, ou a bala com algum problema, mas o fato era que a bala apenas havia arrancado um pedaço da pele, a trajetória provável desviada para qualquer outro lugar. Tratava-se daquilo sobre o qual todos falam, mas todos duvidam: um milagre. Sou devoto de Santa Luzia. Rezei para ela e vi uma luz descendo. Eu estava com muito medo, mas, naquele instante, percebi que tudo ia dar certo. Minha mãe havia me ensinado: quando fazemos uma prece da forma correta, o nosso apelo é atendido. Além disso, lembrei de um amigo que me ensinara a jamais dar conta de todas as pendências. A morte nunca leva pessoas com pendências a resolver, apenas aquelas que estão com a agenda em dia. Eu fizera bem em não corrigir todas as provas e não ter vivido todos os amores possíveis. Eu ia sair daquela situação.


Ele voltou ao trabalho dois dias depois. Um mês depois, ganhou da família uma máquina exatamente igual a que tinha. Foi bom. Fiquei com a impressão de que estava retomando o que havia sido tirado de mim. A raiva que eu sentia, o desejo de vingança que me alimentava, tudo isso foi desaparecendo. Sobrou o agradecimento, a certeza de que havia sido premiado com uma segunda chance de viver. 


Pareceu que a vida voltava ao normal. Dizem que o tempo cura tudo. Ou quase tudo, ou quase sempre. Não canso de contar o que me aconteceu. É uma forma de provar para mim e para os outros que eu consegui sobreviver. Continuei com a sensação de que eu passaria por aquilo de novo. Ainda fico sobressaltado quando ouço algum estampido, quando vejo meu sobrinho com uma arma de brinquedo ou quando ouço algum noticiário sobre tiro. 


No tarot, a carta da Roda da Fortuna representa o destino, a sorte e as mudanças. Fazem parte do seu desenho as figuras de uma criança, de um jovem, de uma pessoa madura e de uma pessoa idosa. Também estão ali os quatro elementos: o Ar, o Fogo, a Terra e o Mar. Fases, contingências, eventos, alegrias e tristezas se alternam ao longo da nossa vida. A Roda traz implícita a circularidade, como se todos os acontecimentos fizessem parte de uma grande e enorme sequência cíclica. Parece estranho aceitar a ideia de ciclo, já que ela pressupõe determinismo e o conhecimento prévio do que acontecerá no futuro. Nós simplesmente não sabemos.  Seguimos em frente, acreditando que o Bem triunfará e que o Mal perecerá. É o que podemos fazer. É tudo que podemos fazer.



¹Em 09 de dezembro de 2019, soubemos do tiro que o Adilson havia levado. Horrorizados, aguardamos as notícias do hospital. Parecia impossível acreditar que ele escaparia. Os que o amam não conseguem esquecer aqueles momentos terríveis e o quanto ficamos felizes de saber que ele estava se recuperando e que estaria em breve ao nosso lado. Ele é doce, tranquilo, talentoso e generoso. Nunca o vi desejando mal a qualquer um. Sempre foi um excelente filho e é um tio exemplar. Nas suas redes sociais, sempre o vejo cercado de crianças no zoológico, nos parques, nas piscinas, nas praias e no cinema. Já sou madura o suficiente para saber que coisas boas acontecem para pessoas ruins e que coisas ruins acontecem para pessoas boas. Os critérios do destino não são nada meritocráticos. No entanto, quando sabemos que algo terrível aconteceu a uma pessoa que não merecia passar por aquela experiência, ficamos refletindo sobre a lógica do funcionamento do mundo. Ou sobre a lógica que move as escolhas do Ser Poderoso no qual muitos de nós acreditamos. Não há lógica que esteja ao nosso alcance. Algum poeta disse que o único sentido das coisas é elas não terem sentido algum. Difícil aceitar que nossa vida dependa de coisas que não escolhemos ou sobre a qual não temos controle. Outro escritor disse que não precisamos compreender tudo para sermos felizes. Deve ser sobre isso que estamos falando.



Ivy Judensnaider

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