Memórias de Um Passado Presente
As lembranças mais remotas da minha infância têm a praia como cenário principal: meu pai sempre gostara do mar e minha mãe, quando ainda não se sabia dos buracos na camada de ozônio, adorava bronzear-se.
No Brasil do milagre econômico e da gasolina de graça, meus pais acabaram comprando um apartamento numa cidade do litoral do estado. Ficávamos, pois, na praia, durante os noventa dias de férias de verão, de dezembro a fevereiro. Nossa rotina regular envolvia passar as manhãs na praia, almoçar algo leve, dormir um pouco à tarde, lanchar e passear pelas calçadas do centro comercial de noite. Além da praia, as outras e únicas diversões eram o parque de diversões e o solitário cinema da cidade, que apresentava um novo filme a cada tarde.
A ida da nossa família para a praia, logo no começo de dezembro, era precedida por uma grande operação logística cuja complexidade só agora sou capaz de perceber. Antes do início das férias, meus pais viajavam algumas vezes para o litoral com o propósito de levar roupas, utensílios e alimentos. Finalmente, quando tudo já estava arrumado, íamos para a praia acompanhados por uma auxiliar doméstica e por uma amiguinha que eu podia convidar: era quase um dever para as famílias que alugavam apartamentos na praia (ou que fossem proprietários de imóveis) convidar uma criança da comunidade cujos pais não tinham condições financeiras para usufruir desse conforto.
Encontrávamos na praia todos os nossos amigos do Bom Retiro e de Higienópolis, visitávamo-nos com frequência e assistíamos aos mesmos filmes que já havíamos visto na temporada anterior de verão: no entanto, tudo era magia na praia. O sol quente, o mar, os sorvetes e os novos – e estranhos – hábitos familiares: enquanto as esposas e mães ficavam na praia com os filhos, os maridos voltavam para São Paulo para cuidar de suas lojas ou consultórios. Retornavam à praia todos os fins de semana com frutas, alimentos e presentes, um pouco mais pacientes com as crianças e mais carinhosos com as mulheres. E, por conta dessa rotina, as sextas e sábados, de noite, as crianças ficavam em casa enquanto os casais saíam para passear e conversar.
A chegada do meu pai era sempre motivo de festa. Nossa sensação era de alívio porque, na companhia dele, podíamos comer quantos sorvetes quiséssemos e ficar no mar por mais do que quinze minutos. Sou obrigada a abrir parênteses: hoje, tenho quase certeza que minha mãe não controlava a quantidade de sorvetes por capricho. Meu pai, provavelmente, deixava o dinheiro contado para as despesas da semana. O controle de tempo no mar também tinha uma explicação lógica: longe dos médicos e de hospitais, o medo da minha mãe era que adoecêssemos e ela não tivesse como nos socorrer. Fecho os parênteses: naquele tempo, porém, com o meu pai extremamente empenhado em fazer o que hoje chamamos de alienação parental, era fácil para nós criticar nossa mãe e idolatrá-lo.
Meu irmão e eu passeávamos pela areia com mais liberdade quando meu pai estava lá. Sem os olhos de águia da minha mãe nos seguindo, meu irmão e eu pegávamos nossas boias de borracha e íamos explorar a beira do mar. Sentíamo-nos seguros. Todos os nossos vizinhos e amigos estavam lá e, caso nos perdêssemos, bastaria chamar um deles e pedir para que nos levassem de volta para casa. Por conta disso, uma bela manhã, fomos caminhando em direção à ponta direita da praia, sem nos dar conta da distância percorrida.
Ficamos assustados quando, de repente, percebemos não reconhecer mais a paisagem. Estávamos bem longe dos nossos pais, eu pensara, com vontade de gritar e chorar. Lembro de ter segurado o medo: eu não podia deixar meu irmãozinho mais angustiado do que ele já estava. Os lábios trêmulos, ele agarrava minha mão com força.
- “Você sabe onde a gente está, Ibinha?”.
- “Não, mas a gente não pode estar tão longe assim. A gente só precisa voltar pelo mesmo caminho, virar à direita e andar. Além disso, a mamãe já dever ter percebido nossa falta e mandou o papai procurar a gente. Ele vai nos encontrar”.
Ele nos encontrou depois de meia hora, quando já estávamos prestes a procurar por um salva-vidas que nos socorresse. Ele caminhava tranquilamente, olhado o mar e a beira d’água, sem qualquer preocupação.
- “Achei!!!”.
Assustado, meu irmão não parava de chorar; eu, em contrapartida, parecia estar em estado de choque, muda e imobilizada. Para fazer meu irmão parar de chorar e para me tirar do torpor, ele nos abraçou e explicou:
- “A praia parece toda igual. A gente vai andando e andando e, de repente, percebe que se perdeu. Sabe como eu faço para não me perder?”
- “Não, papai”.
- “Eu olho para os prédios e marco um como referência. E, para ter certeza de que não vou me perder, também gravo na memória os prédios que estão à esquerda e à direita. Não tem como existir três prédios iguaizinhos a esses na mesma sequência, não é? Assim, de tempos em tempos, vocês precisam olhar para a orla e ver se estão longe dos prédios que marcaram. Se estiverem, retornem. Se vocês andarem muito, e se sentirem perdidos, não fiquem preocupados. Vocês vão caminhar no sentido inverso e andar até encontrar esses três prédios. Fácil, não é?”.
Não lembro do que aconteceu quando voltamos para perto da minha mãe. Devo ter apagado da memória: imagino o quão nervosa minha mãe estava e o quanto ela devia estar desejosa de dar uns tabefes na gente. Daquele dia, lembro do nosso medo, meu e do meu irmão, e do nosso alívio quando fomos, finalmente, encontrados. Não sei em relação ao meu irmão: quanto a mim, tornei um hábito o costume de marcar, na memória, prédios, casas e muros como referência de qualquer lugar para o qual eu, talvez, desejasse voltar. Pensando bem, acho que tem sido assim por boa parte da minha vida: tenho procurado garantir o meu retorno, seja lá de qual lugar eu tiver partido.
Ivy Judensnaider
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