Outras Histórias
O que são as coisas, afinal? Elas não são apenas o que são, o que nossos olhos – ou os dos outros – veem. E, se elas são mais do que aquilo que vemos, como fazer referência a elas, como delas falar? Talvez, por isso, escrevamos poesias, romances e novelas: precisamos criar armadilhas e subterfúgios de linguagem para que todos possam entender sobre o que estamos falando, sobre quais as coisas a respeito das quais estamos falando.
As coisas são muito mais do que o que simplesmente são. Elas reúnem as histórias por elas – e sobre elas – contadas, as lendas, os desejos, as músicas que evocam, as memórias que as ondas do tempo trazem para a areia da existência humana, o tempo contido nas suas moléculas, as preces e rezas que inspiram.
Esta narrativa de agora diz respeito a uma coisa. Vamos falar de um carro, um jipe Toyota. Ou melhor, das pessoas que tiveram aquele carro. Ou, melhor ainda, de todas as coisas que estavam contidas na Toyota.
O pai era vendedor de champignon, talvez um dos primeiros da cidade de São Paulo, e fornecia para restaurantes famosos e icônicos. Ele era conhecido como Sr. Luiz Mazur, ou o Senhor Luiz da Toyota Bandeirante, o carro que dirigia. A Toyota tinha um banco de ferro, sem estofamento, a marcha funcionava de acordo com certas regras especiais e exalava cheiro de diesel. Quando ele chegava aos clientes, as pessoas diziam: “olha, chegou o Luiz dos champignons da Toyota”. Era essa a identidade dele.
Quando a filha fez 18 anos, o Senhor Luiz disse que havia chegado a hora de ela dirigir o carro. Ela não sabia dirigir e teve receio: afinal, aquele carro havia sustentado a família por muitos anos. E se ela cometesse um erro e destruísse o carro?
Depois, o Sr. Luiz deu à filha uma Toyota Bandeirante 1979, mais moderna, com um motor de um caminhão Mercedes Benz 608. Aliás, o carro também tinha uma bateria de caminhão. Dirigir a Toyota, especialmente em ladeiras e em dias de chuva, envolvia perigos, aventuras e desafios. Cuidadosa, ela seguia as instruções do pai: era necessário esquentar o motor por cinco minutos antes de sair andando. Todo mundo passou a conhecê-la como a Chris, da Toyota. A Chris da Toyota, filha do Senhor Luiz da Toyota. Essa passou a ser a identidade dela.
Ela ficou com o carro até o ano 2000: com a Toyota, levou filho para a escola e começou a trabalhar como professora. Fez parte da vida dela durante quase vinte anos. O carro foi abandonado quando teve que mudar de endereço: não havia como estacioná-lo na nova garagem.
As coisas são muito mais do que o que simplesmente são. Elas são, também, o esforço que fazemos para guardá-las ou para descartá-las. Algumas vezes, elas transcendem até mesmo o que são além do que achamos que são e se transformam em marcas e espaços de memória. Elas – o que parecem ser – vão embora, e ficam aquilo que são, de fato: cheiros, sons, afetos e saudades.
¹Conheço a Chris Mazur há muito tempo. Recentemente, descobrimos ter algo em comum: o amor por nossos pais. Tanto no caso dela como no meu, ao perdê-los, sentimos que ficáramos sem as únicas pessoas que haviam nos amado incondicionalmente. Por isso, quando vi a foto da Chris com a Toyota, fiquei com vontade de contar a história. Gostei da Toyota. Entendi que a Toyota era muito mais do que a Toyota.
Ivy Judensnaider
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